terça-feira, 8 de julho de 2014

Paris, a capital mundial das manifestações e protestos


Palco VIP. Ativistas do grupo feminista Femen protestam diante da Torre Eiffel contra a líder oposicionista ucraniana Yulia Tymoshenko e o presidente da Rússia, Vladimir Putin
Foto: Gonzalo Fuentes / Reuters
Palco VIP. Ativistas do grupo feminista Femen protestam diante da Torre Eiffel contra a líder oposicionista
ucraniana Yulia Tymoshenko e o presidente da Rússia, Vladimir Putin - Foto: Gonzalo Fuentes / Reuters
O jornalista correspondente Fernando Eichenberg, de O Globo, publicou neste domingo (6), uma excelente matéria sobre as inúmeras manifestações e protestos que Paris acolhe anualmente. Abaixo reproduzo e recomendo a leitura, segue o texto:

A capital dos protestos

Paris é palco rotineiro de dez manifestações por dia, com 11 milhões de participantes em 2013

"Em razão de uma manifestação na via pública, as linhas de ônibus 26, 30, 31, 32, 35, 38, 39, 42, 43, 46, 48, 54, 56, 65 e 350 sofrerão perturbações nesta quarta-feira a partir das 13h". Avisos como este, divulgado no último dia 3 pela rede de transportes públicos, fazem parte do cotidiano do parisiense como a Torre Eiffel no horizonte e a baguete matinal da padaria da esquina. A capital francesa é reconhecida como a capital mundial das manifestações de rua. Só no ano passado, ocorreram 3.411 - numa média de quase uma dezena por dia, segundo os números oficiais. Em um ano, o número total de manifestantes aumentou de 9,5 milhões para 11 milhões, um crescimento de 14% - e de 77,4% em relação aos 6,2 milhões de 1999.

Na semana passada, quem desejasse poderia apoiar a luta dos carteiros por melhores condições de trabalho; reivindicar justiça nos tribunais ao lado das famílias das vítimas da tragédia do voo Rio-Paris de 2009; participar da passeata de militantes contra o sexismo e o preconceito a gays, lésbicas e transsexuais; manifestar contra o desemprego e a precariedade no país; exigir a liberdade do norte-americano Mumia Abu-Jamal, preso nos EUA que se tornou símbolo dos oponentes à pena de morte; ou protestar contra os armamentos nucleares, a lei que impõe novos ritmos escolares na rede de ensino pública ou o fim do programa de rádio "Là-bas si j'y suis", criado em 1989.

Bandeiras e protagonistas não faltam. Por tradição, os franceses "têm uma necessidade visceral de descer às ruas para manifestar por não importa qual razão", disse certa vez o comissário Pierre Mure, que dirigiu o Departamento de Ordem Pública e de Circulação (DOPC) da polícia de Paris. A centralização das instituições na capital e o "status bastante liberal que rege as manifestações explicam a sua frequência", concluiu o policial.

Mas nem sempre foi assim. Antes de se impor como rotina na Paris de 2014, a manifestação, nos moldes em que é hoje praticada, surgiu como um elemento intruso da modernidade urbana no século XIX. Da Revolução Francesa de 1789 à Comuna de Paris de 1871, a rua parisiense foi o berço das revoltas pelas quais regimes emergiram e caíram, assinala Danielle Tartakowsky, especialista em História Política da França e autora do ensaio "Manifestar em Paris - 1880-2010" (ed. Champ Vallon). Clássicos da literatura, como "Os miseráveis" (1862), de Victor Hugo, e das artes, como "A liberdade guiando o povo" (1830), de Eugène Delacroix, possibilitaram ao imaginário político sedimentar de forma durável o sentimento de que "Paris (...) só é Paris em se arrancando seu calçamento", nas palavras do poeta Louis Aragon (1897-1982), acrescenta a historiadora.

Cidade das revoluções, sua relação com a política do espaço público é bem mais forte do que em outras capitais, diz Tartakowsky. Em Paris, diferentemente de Londres e Berlim, mais extensas, o pedestre se inscreve de forma mais íntima com a cidade num vínculo de longo prazo.

- Paris não viu impor de forma precoce grandes espaços do tipo do Hyde Park, em Londres, ou dos amplos parques de Berlim, que são abertos aos agrupamentos, mas impróprios a passeatas. Em Paris, há sem dúvida uma relação particular com a estrutura urbana e a história política. A mobilização coletiva em suas formas gerais foi um elemento forte na história francesa - sustenta.

Nos anos republicanos pós-1880, o poder público garantiu "as grandes liberdades democráticas de reunião, de imprensa, de expressão, mas não a de organizar manifestações", diz a historiadora. Isso se encerra em 1976, quando a capital volta a ter prefeito eleito. E só nos anos 1980, no governo de François Mitterrand, os estrangeiros foram autorizados a se organizar em associações.

- Paris precipita hoje todos os conflitos do planeta em seu território. É algo muito específico da cidade - assinala, numa alusão aos onipresentes protestos de curdos, ucranianos, argelinos, turcos, tunisianos ou também brasileiros (cerca de um quarto das manifestações visa às representações diplomáticas).

A própria Danielle Tartakowsky, 67 anos, protestou no último 1º de Maio. Na sua opinião, manifestar-se é uma forma de expressão política que depende da boa saúde democrática de um país:

- Em Paris, é fruto de um longo aprendizado. Eventuais problemas aparecem quando há atores estrangeiros que acabam de chegar, que não têm essa cultura manifestante, e querem jogar com outras cartas.

Na sala de comando do DOPC de Paris, repleta de telas exibindo em tempo real imagens captadas pelas mais de 13 mil câmeras de vigilância espalhadas pelas cidade, as atenções estão também centradas nas manifestações previstas em diferentes locais. Desde 1935, a lei exige um pedido oficial dos manifestantes às autoridades, apresentado num prazo três a 15 dias anteriores à data da passeata. Após análise, a polícia avaliará e autorizará o percurso solicitado ou determinará um outro. Raras são as demandas recusadas - 28 no ano passado - na maioria das vezes por receio de conflito entre manifestantes pró e contra a causa em questão.

Em relação às forças de ordem, a violência diminuiu nas últimas décadas, segundo Danielle Tartakowsky:

- Houve uma profissionalização da polícia ao mesmo tempo em que ocorreu a regularização pública das manifestações - avalia Tartakowsky.

Apesar do controle, aumenta o número de manifestações espontâneas, organizadas clandestinamente e com ajuda das redes sociais, principalmente à noite. Atenta, a polícia estabeleceu novos mecanismos de vigilância para poder deflagrar uma reação de urgência.

Sentadas na calçada em frente ao Instituto de Estudos Políticos de Paris, o mítico Sciences-Po, na Rua Saint-Guillaume, as estudantes de Direito Laura, 24 anos, Arianne, 23, e Charlotte, 23, contam que cresceram junto às manifestações.

- No tempo da escola, todo mundo já saiu um dia à rua para se manifestar, mesmo sem saber o motivo - confessa Arianne. - As pessoas se deram conta de que era possível obter coisas descendo às ruas. Mas é preciso discernir e se concentrar nas grandes questões.

Charlotte, alemã de nascimento e hoje estudante em Paris, destoa no trio: nunca participou de uma manifestação:

- Nunca senti realmente a necessidade, uma causa que valesse. E em Berlim é diferente, não há tantas como aqui em Paris - justifica.

Fugido da ditadura militar brasileira, o fotógrafo Sebastião Salgado desembarcou em 1969 em Paris, cidade que acabou elegendo como sua morada até hoje. No início de seu autoexílio como um jovem economista, também foi às ruas na capital francesa para participar de protestos contra os regimes autoritários na América Latina. Para o célebre fotógrafo, o Brasil teria lições a aprender dos franceses nesse quesito:

- O francês é um animal político por excelência, isso é uma forma de democracia fantástica. Essas manifestações que estão começando no Brasil por vezes degeneram. Isso faz parte da infância das grandes manifestações. Aqui é uma forma de vida, as pessoas convivem com isso. Por vezes atrapalham o cotidiano, mas valem uma democracia - conclui.

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