domingo, 1 de fevereiro de 2015

Alunos da periferia de Paris transformam Champs-Elysées em foco de estudo



O jornalista correspondente Fernando Eichenberg, de O Globo, publicou hoje uma excelente matéria no Globo Online sobre estudantes de sociologia franceses para os quais o verdadeiro ‘gueto francês’ não estaria nos subúrbios pobres e sim nos bairros ricos. Segue a matéria:
"Menos de trinta minutos e uma dezena de estações da linha 13 do metrô parisiense separam a cidade de Saint-Denis, subúrbio popular no norte da capital, do luxuoso entorno da célebre avenida de Champs Elysées. Durante três anos, entre 2011 e 2013, o professor de Sociologia Nicolas Jounin, da Universidade Paris 8-Saint-Denis, levou uma centena de seus alunos para um estudo de campo nos arredores do chamado “Triângulo de ouro”, zona delimitada pelos Champs-Elysées e as avenidas Montaigne e George V. A ideia do projeto era iniciar os estudantes de primeiro ano de faculdade na metodologia da investigação sociológica, neste caso invertendo a recorrente escolha da periferia pobre como objeto de pesquisa. A experiência virou livro, “Voyage de classes” (“Viagem de classes”, ed. La Découverte) — já na quarta tiragem da 1ª edição —, reverberou na mídia e suscitou debates nestes tempos em que o premier Manuel Valls denunciou a existência de um “apartheid territorial, social e étnico” em uma França formada por “guetos”. Para estudantes de Saint-Denis, por uma definição sociológica, o verdadeiro gueto francês não estaria localizado nos subúrbios pobres, mas nos bairros ricos de Paris.

Jounin defende sua iniciativa no contexto de um aumento das desigualdades sociais e econômicas nos últimos 40 anos no país, provocador de uma “segregação espacial” de populações mais pobres em cidades como Saint-Denis, e da concentração de camadas mais favorecidas em bairros como Champs-Elysées, correspondente ao 8º distrito de Paris.

— Essas desigualdades e essa segregação se traduzem por um modo de vida específico dos frequentadores e, sobretudo, dos habitantes destes bairros burgueses. E a densidade de sua sociabilidade, pelas escolas, clubes e rituais comuns, é o que produz uma consciência de classe provavelmente mais aguda do que em outras classes sociais — sustenta.

‘MAIS GUETO DO QUE SAINT-DENIS’

Números e estatísticas ilustram o abismo entre dois mundos nem tão distantes no mapa. A média do salário anual no “Triângulo de ouro” é de € 82 mil, contra € 16 mil em Saint-Denis e € 23 mil no país. A renda na área de Champs-Elysées depende menos do salário: 20% provêm de rendas de propriedade, contra 7% na escala do país e 2% em Saint-Denis.

Jordan Mongongnon, de 23 anos, que mora com os pais numa habitação popular de Bessancourt, ao norte de Saint-Denis, participou do primeiro grupo da pesquisa.

— O 8° distrito se constitui muito mais como um gueto do que Saint-Denis — opina ele. — Saint-Denis está mais próxima da realidade geral da França do que o 8° distrito. Isto, de algum modo, nos leva a tomar uma certa consciência de classe, mesmo que hoje não seja algo tão marcado como no passado. É por meio desta confrontação brutal que percebemos as desigualdades.

Em seu trabalho universitário, os alunos observaram e fizeram enquetes em butiques de luxo, hotéis cinco estrelas, bares e cafés, e interrogaram moradores. Num primeiro contato com a prefeitura do bairro, Jounin foi alertado de que seus alunos poderiam ser “recebidos a tiros” pelos habitantes locais se batessem às portas para propor questionários e pesquisas. Em suas tentativas de observação como clientes, os estudantes na maioria das vezes não obtiveram sucesso, segundo eles, por serem tratados de forma diferenciada, seja pelo desprezo de vendedores ou garçons ou pela vigilância de segurança.

— Rapidamente éramos catalogados como clientes ilegítimos. Por um lado, há uma racionalidade nisso, pois identificavam que não iríamos comprar — admite Jordan. — Mas há um tipo de tratamento constante de fazer você se dar conta quem é e de onde vem. A lógica implícita por trás desta interação é deixar claro que você não é bem-vindo. A Champs-Elyseés e seu comércio querem se manter como um lugar para privilegiados, e temem que algo possa afugentar seus clientes prioritários.

Miguel Cerejo, 26 anos, filho de um operário e de uma zeladora de prédio, mora com os pais no 17° distrito. Para ele, que integrou o último grupo do estudo, a experiência deixou flagrante a falta de diversidade social no “Triângulo de ouro”:

— A burguesia rica é hoje na França, do meu ponto de vista, a única classe social consciente de sê-lo, e que defende com afinco seus interesses. É um grupo socialmente fechado, que se reproduz socialmente, e busca assim preservar seu poder.

Para ele, uma das surpresas reveladas pela pesquisa foi a presença do “sexismo” no bairro rico.

— Há diversos círculos e clubes privados masculinos. Alguns aceitam mulheres, mas elas não têm direito a voto. A mídia em geral sempre aponta o sexismo nas classes populares, mas nos damos conta de que na alta burguesia isto também ocorre. Não esperava, foi algo que me surpreendeu — confessa.

‘MINORIA DESCONECTADA’

As anotações dos alunos abordam uma variedade de aspectos: alguns assinalaram mesmo a presença de pombos mais saudáveis em Champs-Elysées, e outros, a ausência de toaletes públicos (apenas 12, ou três por km² e seis para cada 100 mil habitantes), o que seria uma maneira de afastar os mais pobres, sem dinheiro para consumir num café e utilizar o banheiro. Também foi notada a diferença de tratamento de mulheres portando o véu: em Saint-Denis, o véu islâmico simboliza e cristaliza um conflito entre funcionários do Estado, nas escolas públicas, e parte da população; já na avenida Montaigne, endereço de lojas de prestígio, mulheres com véu da Arábia Saudita ou do Qatar são recebidas como clientes afortunadas e especiais, anotaram os alunos.

O 8° distrito conta com menos de 2% de habitações populares em sua área, índice que sobe para 40% em Saint-Denis e 15% na média do país. A prefeitura prefere infringir a lei e pagar multas, e justificou sua atitude ao professor argumentando de que nada adiantam habitações populares se o comércio ao redor é extremamente caro: há confeitarias de luxo Hédiard, mas não supermercados.

Jordan diz que a explicação municipal “se sustenta”, mas ressalta:

— Se franceses não podem se instalar e viver em um bairro francês, é porque algo está errado. É esta minoria que deve compreender que está desconectada, e isto é uma forma de eles manterem seus privilégios.

Já Abigail Tiecoura, 24, fez parte do segundo ano da prática sociológica no “Triângulo de ouro”:

— Esta experiência me ensinou que é preciso nos conhecermos melhor, compreender ainda mais as questões que levam à formação de grupos, para permitir novas possibilidades de igualdade, pois acredito que são possíveis."

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